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11 de jan. de 2010

Desabafo de uma secretária de escola

Já publiquei no último post sobre a Coleta de Frequência, que tirou todo mundo do sério. Com a permissão dos autores, publico hoje dois posts de secretários de escola, falando sobre a mesma situação. A Citação da publicação original está no final da postagem. Segue o desabafo da amiga Carolina, da DE Leste4.

Desabafo de uma secretária de escola

A princípio, minha próxima publicação no blog seria mais um da série Solteira Desesperada e eu tinha me proposto a não escrever sobre meu trabalho atual enquanto estivesse lá, tinha a intenção de postar alguma coisa no estilo memórias. Mas aconteceram algumas coisas “um pouco atípicas” na última semana e estou realmente chateada com a situação como um todo, tendo apresentado inclusive sinais físicos do estresse causado, por isso decidi antecipar as tais memórias.

Sou secretária de escola há quase seis anos. Nesse período, passei por três escolas e nem sei mais com quantos diretores e professores já trabalhei. Antes de qualquer coisa, quero deixar claro que não me vejo como uma coitada ou uma vítima, por isso peço ao leitor que se desarme, antes de criticar. Estou neste cargo por mérito próprio. Aos 18 anos, passei num concurso disputadíssimo, que cobrava um conteúdo extenso, inclusive com prova dissertativa. De fato, o salário é baixo, mas eu sabia quanto era quando assumi o cargo (o que eu não sabia era o tamanho da responsabilidade, da exigência e do nervoso atrelados a esse cargo, bem diferentes da ideia que se faz de um secretario de qualquer coisa). Sempre acreditei que propor soluções é melhor do que reclamar e o fiz quando tive a chance de participar de reuniões a esse respeito. Sempre trabalhei em escolas de periferia, mas eu também sabia o endereço delas quando escolhi a vaga. Vou todos os dias ao meu emprego para trabalhar e é isso que faço, não espero que se concretize aquela ideia de que funcionário público não faz nada e tenho verdadeiro horror a quem pensa assim. Valorizo muito as coisas boas que meu emprego me traz, como a estabilidade e todo quinto dia útil do mês meu salário estar na conta, o que é privilégio para poucos neste país.
Quando disse que essa semana foi atípica, estava me referindo a um serviço de digitação/confirmação de frequência dos docentes a partir de 1990 até novembro passado. O tal serviço seria só mais uma rotina, não fosse o fato de ter sido passado às escolas no período de recesso, de haver um prazo ridiculamente mínimo para tanto (em geral, a digitação da frequência de um mês tem de 2 a 5 dias úteis de prazo, nesse caso, 239 meses ficaram com menos de 10 dias) e de o sistema onde a tal digitação devia ser feita não ter ficado aberto nem metade desse tempo. Foi uma semana de muito estresse por parte dos secretários e diretorias de ensino. Por outro lado, parecia que os responsáveis pelo sistema e pela requisição da tarefa estavam rindo da nossa cara. A última piada, após um dia e meio com a #*$@!%& da PRODESP fechada, foi o sistema ter sido reaberto na sexta-feira depois das 16h30min e de o prazo ter sido prorrogado somente até SÁBADO (o que foi avisado de última hora, de modo que muita gente nem ficou sabendo).
A tal digitação (quando o sistema ainda funcionava mais ou menos) gerou até abaixo-assinado por parte dos secretários, tamanha era a insanidade de esperar que um troço desses funcionasse nesse prazo. Confesso que me surpreendi um pouco, pois é comum ver as pessoas reclamarem de tudo de errado que acontece, mas poucas iniciativas para melhorar nossas condições, tanto é que vários secretários que abriram mão de seu sábado ensolarado com a família para ficar até à noite na escola a fim de cumprir o prazo. O detalhe é que nenhum secretário de escola ganha serviço extraordinário e a compensação dessas horas trabalhadas a mais, vai do bom-senso do diretor da unidade de cada um (o que muitas vezes deixa a desejar).
Tenho plena noção da importância do meu trabalho e sei que muita gente sai prejudicada se eu não o fizer bem feito, por isso me dedico ao máximo, realizo minhas tarefas com amor e da maneira mais correta possível.
Já trabalhei muitas vezes fora do meu horário de expediente (na verdade, faço isso sempre que julgo importante e sempre que, por razões minhas, eu considero que não dei conta do que tinha para fazer). Já entupi a sala da minha casa de históricos escolares em pleno feriado comprido e ainda ocupei minha família inteira com a conferência deles. Já usei o meu computador pessoal e a minha internet para trabalhar quando não tinha equipamento na escola. Já lotei meu carro novo de material de limpeza e outras quinquilharias que precisavam ser levadas para a escola. Já trabalhei muito nas minhas férias. Já me atrasei para um monte de aulas da faculdade porque não saí da escola no horário (e também já perdi outras tantas pelo mesmo motivo). Já fui ameaçada de morte por professor descontrolado. Já saí chorando da escola/ diretoria de ensino por conta de gente que se achou no direito de me humilhar porque sou uma simples secretária. Já incomodaram a minha avó (que tem 75 anos) com telefonemas incessantes porque não conseguiram me encontrar (fora do meu horário). Já fiz “entrega” de aluno passando mal. Já fiz doação de mobiliário para a escola. Já comprei muito material com meu próprio dinheiro para poder ter coisas um pouquinho melhores para trabalhar.
Já fiz (e continuo fazendo) uma série de coisas que não deveria, uma vez que não sou nem paga nem reconhecida para fazê-las. Mas nada disso parece absurdo porque é comum. Não sou a única, nem fui a primeira, muito menos serei a última a se submeter a isso, como se todos os “extras” estivessem discriminados no edital do concurso. E no fim das contas o que eu (e todos os meus colegas de cargo) ganho com isso?
Eu ganho a hostilidade de uma resposta atravessada “A digitação é até amanhã, sábado, às 22h00”, como se eu estivesse recebendo um favor por ter deixado de fazer meu trabalho e não o trabalho deixasse de estar lá para eu fazer. Eu ganho ter benefícios como uma “subclasse” dentro dos quadros da Secretaria da Educação, pois enquanto o professor tem um ALE (benefício por trabalhar em zonas de vulnerabilidade social/ difícil acesso) de 20% do salário, o meu é de 6%; enquanto o professor (que precisa de nível superior) sobe automaticamente do nível I para o IV ao concluir o mestrado (assim como para os professores primários, que antes só tinham o curso de magistério, ao concluir uma licenciatura), eu preciso esperar 5 anos para subir do nível I para o II com meu diploma de curso superior; enquanto a remoção dos docentes tem data certa para acontecer, a dos funcionários sai de surpresa de hoje para hoje, com 3 meses de atraso sobre a data prevista.
Eu ganho ter responsabilidade sobre toda a documentação de aluno que sai da escola, mais ser O RH (não ser parte do RH), mais ter de estar informada de todas as novidades legais e participar da maioria dos processos burocráticos de dentro da escola, e em troca ter um salário que não banca o sonho pequeno-burguês de uma pós-adolescente (leia-se a prestação de um apartamento, um carro popular, a cervejinha do fim de semana e a escova progressiva no fim do mês sem depender de ninguém para isso). Eu ganho cabelos brancos antes dos 20 anos (isso doeu). Eu ganho esperar ansiosamente pelo recesso do fim do ano porque é a única época em que realmente consigo descansar (com a escola fechada, ninguém vai me ligar e me tirar do meu sossego, o que não acontece nas faltas abonadas, férias, etc.).
Eu ganho ser tratada como palhaça pelo Governo do Estado e a Secretaria da Educação, que lançam as normas dos processos quando eles já estão ocorrendo (vide atribuição de aulas, que é só o acontecimento burocrático mais importante de todos, cuja resolução desse ano foi publicada no último dia 30/12, sendo que o processo começou com as inscrições em 14/10/09). Eu ganho dar meu máximo e, ainda assim, muitas vezes me sentir uma incompetente (e de vez em quando ser tida como tal, como para o professor que me pergunta em que dia ele volta na escola para a atribuição e eu respondo que não sei). Eu ganho me iludir que tudo vai melhorar, quando penso que finalmente alguém se importa com quem sustenta a operacionalização de tudo o que acontece na escola, e ser surpreendida por cronogramas não cumpridos e insanidades (como a tal da maldita digitação) que só podem ter sido propostas por gente que não tem a menor ideia de como a coisa se dará na prática. Eu ganho ser desrespeitada com o fato de ser a única peça do sistema que tem prazos a cumprir (eu tenho prazo para entregar meu trabalho, mas não há prazos de resposta, não há prazos para orientações e, muito menos, para o sistema funcionar). Eu ganho, além de organizar o trabalho dentro da secretaria, ainda ter de organizar o uso dos computadores, como quem coloca crianças numa fila.
É essa minha rotina. Os mesmos problemas se repetem a cada evento e parece que ninguém se importa. Sei que há certas coisas que são mais complicadas de se conseguir, como uma nova legislação que regulamente aumento de salário e outros benefícios, ou a aquisição de materiais caros (computadores, copiadoras, etc.). Mas a organização das atividades, a mudança de abordagem na operacionalização de algumas coisas é bem simples. Se até eu, que sou uma simples secretária, consigo montar uma porcaria de um diagrama de Gantt <> e meus colegas de trabalho, que são simples agentes de organização escolar, conseguem entender e cumprimos tudo, mesmo que com ressalvas por problemas no meio do caminho, por que nossos superiores não são capazes de uma coisa tão simples da gestão do que quer que seja, o PLANEJAMENTO?
Sei que este meu desabafo não mudará muita coisa e provavelmente muita gente deve estar com ódio de mim, por falar tanta “besteira”, me mandando pedir demissão se não gosto do meu emprego. Todavia eu não sou a única e os dados estão aí para quem quiser analisar. Em 2004, quando ingressei no cargo, eram oferecidas pouco mais de 2 mil vagas, ou seja, cerca de metade das escolas estaduais de São Paulo não tinham secretário efetivo. De lá para cá, vi muitos dos colegas que entraram pelo mesmo concurso que eu pedirem demissão para assumir outros empregos públicos (em geral, porque pagavam mais), ou mesmo para ir para a iniciativa privada. Vi até gente que se exonerou para ficar em casa porque o salário não pagava todo o nervoso que o emprego dava. Em 2009, houve outro ingresso e as mesmas 2 mil e tantas vagas estavam disponíveis de novo.
É para se pensar, por que razão um cargo público tem tanta rotatividade, num país onde o emprego formal é cada vez mais difícil. Por que tanta gente se esforça para conseguir uma dessas vagas e logo depois desiste dela?

Postado originalmente em http://fantasticomundodek.blogspot.com/2010/01/desabafo-de-uma-secretaria-de-escola.html

5 comentários:

  1. Faltou a mencão no seu perfil que a escola onde vc trabalha é minúscula (18 classes), e também que modéstia é o seu forte...

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  2. Gostaria do contato da autora desse texto "Desabafo..." pois gostaria de utilizar algumas partes em um Sarau Cultural para educadores de apoio. clayregg@hotmail.com

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  3. Escolas municipais também são assim??

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  4. Esse desabafo foi em 2010 e 10 anos depois nada mudou. Triste realidade onde na educação só importa professor e aluno.

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